Tem chovido aos soluços e um vento morno sempre sobe ao meio das pernas da tarde. As manhãs são cálidas mesmo ao soarem cinza. Ontem, a noite sentindo frio, antecipou o feriado do ventilador. Hoje, há um vento manso nos acenos das flores em minha janela e uma normalidade cartesiana na temperatura que desenha círculos com o hálito pelo vidro.
Seria fantasia em estado puro caso o ser humano não cruzasse a linha do abuso feito com a natureza, e ela, depois de muito salientar sua imensurável paciência tal qual um budista recém-formado, não retribuísse de maneira violenta todo esse desamor. O saldo devedor é sempre pago pelas pessoas em dias como hoje, visto que avisto pelo canto dos amedrontados lábios uma tempestade aos solavancos. Tudo seria de uma tranquilidade atroz, não fossem os galhos da árvore vizinha aos carinhos com a fiação do poste enquanto afaga o transformador mostrando-lhe dentes tal cachorro possessivo.
A cidade de São Paulo, além do tecer sedimentos de memória aos arautos militarescos tais Deodoros ou Bandeirantes, possui dois milhões de postes segundo a contagem feita pela empresa italiana, que em dois mil e dezoito ganhou a concessão do fornecimento de energia. Famosa Enel, é folha terminal de um longo processo predatório dos recursos energéticos.
Memorabiles: A Eletropaulo, manufaturada em 1981, foi retalhada dezessete anos depois em quatro empresas menores responsáveis pela distribuição de energia na região metropolitana, interior e litoral.
Transformou o estado de São Paulo no perfeito paciente dentário que remove cáries profundas sem anestesia. Antes do tratamento de canal (sem anestésico) estas empresas compravam energia do governo por 30 reais o quilowatt e revendiam a 84.
A promessa da privatização seria tal compra chegar ao valor de 400 reais, aumentando a arrecadação do estado;
não alcançou nem a metade.
O terceiro molar começa ser escavado em 1995 quando Paulo Garcia cria o arcabouço shelley do Programa Estadual de Desestatização, vagando tal qual um retalho de corpos na Assembleia Legislativa do Estado. Não obstante, Paulo não é pai solo deste procedimento.
Mario Covas, o avô do prefeito eleito morto; André Franco Montoro Filho, integrante do feudo político paulista; Fábio Feldman, secretário do planejamento e Hugo Vinícius Scherer, secretário de energia (depois da privatização construiu um império dentro do mercado imobiliário de luxo na cidade de São Paulo com a Método Engenharia), são genes bandeiristas regurgitando espólios pelo chão da cozinha.
Como pai é quem cria, Rodrigo Garcia, antes de se tornar governador pelas mãos de um suéter humano, flexibilizou ainda mais as regras em 2005.
Geraldo Alckmin, hoje conhecido como o último moicano da direita civilizada, fechou as portas da maternidade em 2018 ao doar as chaves do fornecimento de eletricidade em São Paulo e na região metropolitana à empresa italiana.
Essa é a árvore genealógica que transformou a Enel na maior distribuidora de energia elétrica do Brasil, com faturamento só o ano passado de um ponto quatro bilhão de reais. Tem até 2028 para lucrar e vai, visto que mesmo com problemas históricos de manutenção, cortou entre 2019 e 2023, trinta e seis por cento de seus funcionários.
Menos gente, mais dinheiro.
Retomo meu olhar ao tempo na janela e percebo o caso amoroso entre árvore e poste caminhando tropegamente em direção ao precipício. Cansada, a vegetação notou sinais inesperados na lapela do transformador.
Lembro-me como é regra que todos os mandantes da lista acima apresentem crises de meia idade. Delas sempre rebentam acidentes. Crise que não tarda, diferentemente dos atendimentos da Enel e seus procedimentos estéticos em postes. Ou os atrasos comuns. Outra relação nada saudável ocorre entre as 600 empresas terceirizadas, que cuidam da manutenção dos postes e transformadores, e os corpos em riste de cimento sempre servindo como depósito de fiação.
Isso sem citar o genocídio vegetal, perpetuado nas já mínimas árvores que hoje somam apenas 650 mil revolucionárias.
Como toda violência perpetuada ao longo do tempo, a culpa é da vítima e suas 200 árvores mortas em cada investida de desamparo da natureza.
O governador em campanha presidencial, Tarcísio de Freitas, que não se importa com a vida dos assassinados pelo Neo Esquadrão da Morte Paulistano, repetidamente culpa as árvores pelos problemas de relacionamento.
Escuto uma explosão.
Cansada das desculpas esfarrapadas, a árvore sem pestanejar aplicou um tapa enorme na cara do transformador deixando suas vergonhas labaredas espalhadas pelo chão.
O céu, que teceu um horizonte enovelando-se ao asfalto com duas linhas de costura e cedeu ao piche sua mesma cor, não mais cantava. Possuídos por um ódio de alquimia satânica, galhos arrancavam a consciência do poste com tamanha violência que não era possível definir se a vingança estava no começo ou no meio. Não era uma luta que aos poucos se acalma e transborda em mar de desamparo o dissabor, com cada um dos participantes recolhendo afazeres do ódio pelos cantos da casa.
Foi apenas um massacre.
Confesso que depois de tanto pensar no histórico de violência e da herança bandeirante achei que o poste apanhou até pouco. O problema é que como em todo relacionamento abusivo, o resultado é escuridão.
Aos poucos pintada pelos cantos da tela em pincel dois. Chuva aos berros na janela cava mais fundo pelas nuvens, alaga de melancolia arestas restantes de luz vítrea. Escuridão toma o apartamento. Escorre além corredores enquanto sequestra a escada de fuga, lutando há duas horas pelos fósseis de luz, bailando estertores nas lâmpadas de emergência.
No entremeio do silêncio entre uma trovão e outro, o saldo devedor da privatização bateu em nossa porta. É na escada escura que todo o terror do capitalismo acontece.
Os prédios do centro da cidade são habitados em sua maioria por pessoas mais velhas; muitas delas precisam de elevadores, que fugiram ao ouvir a explosão do transformador. deixaram idosos encostados no batente da porta. Com a escada sem luz, descer ou subir nove andares, ou oito, ou sete, ou seis, ou cinco, ou quatro, ou três, ou dois, ou um, Outra Explosão, é lamber a loucura.
Não apenas os mais velhos residem nessa versão inacabada do Apocalipse. Moradores que precisam de aparelhos médicos, de auxílio para se locomoverem ou até animais em tratamento paliativo que não conseguem descer ou subir escadas.
Todos presos na escuridão; a nos sorrir como um pai ausente.
O maior problema não é carregar mantimentos escada acima ou baldes escada abaixo, pois a bomba de água parou de funcionar após oito horas sem energia.
Carregar uma outra vida nos braços pelas escadas escuras, isso é complicado.
O processo assemelha-se ao caminhar em um cadafalso:
É preciso primeiro agachar-se para poder recolher o corpo ao chão e assim que os joelhos pedem a primeira clemência você entende que está em pé com seu peso e meio ou mais.
Tudo isso feito na beirada da escada iluminada por uma vela ou lanterna, comprada na banca de revista menos distante, traçando ao chão segundos que separam a primeira respiração do desespero. O primeiro passo em direção ao nada do degrau é primordial, seu corpo precosa entender como manter o pânico sob controle.
São pelo menos mais doze dos mesmos pedaços de concreto alucinados para transformar você em um cadáver.
Pès ladeiam pequenos espaços do ar buscando entender o deslocamento do vento ou sentir alguma vibração do chão que avise do lugar exato para depositar sua esperança de equilíbrio. O corpo vulcanizado no teu peito impede a visão da escada como um todo. Artelhos cambaleantes buscam, tal qual travas mecânicas, alcançar arestas dos degraus mesmo trancafiados dentro do tênis. Arrancam o couro do calçado, urram por um bote salva vidas. Pernas ofegantes na descida, iluminadas pelas tabelas.
Cada caminhar é uma vitória sobre o traumatismo craniano, cada passo dado é comemorado pelo encéfalo como se fosse uma ressurreição. Cada pedaço de vida mantida é uma saudade que será sentida no depois.
Conseguir perfazer esse trajeto nessas condições não nos faz pessoas mais fortes, apenas nos coloca em pé de igualdade com todos os desamparados do século vinte e um. A capitalização de lucros exorbitantes atropela a vida tal qual o eco de um relâmpago infinito na cidade deixada para morrer pelas mãos de novos bandeirantes.
Enquanto a solução dada pela Comissão de Inquérito Parlamentar -de 2023 com relatoria de Carla Morando que pede a intervenção imediata na empresa italiana Enel- não acontece, o governador Tarcísio provavelmente reproduzirá o que fez Michel Temer ao assumir a secretaria de segurança logo após o Massacre do Carandiru em 1992:
Recomendar repouso e meditação aos políticos e empresários, do mesmo modo que os policiais assassinos ganharam.