Seu José parado está ao lado direito do último galho relutantemente sóbrio na bicentenária árvore que insiste em manter-se residente viva na câmara de gás também conhecida como centro da cidade. Olhava o horizonte impedido de tornar-se mar pela presença de um muro pintado em amarelo, atropelado por uma enorme faixa azul. Se seus olhos pudessem transpor o embrutecido concreto, certamente avistariam por trás daquela montanha, sussurrando calmarias à catedral bonsai fronteiriça, uma lua cheia tal qual iluminura aos dois condores acrobatas e toda hipnotizada plateia do mar.

A poucos metros da costa em seu barco, adornar-se-ia envolto ao traje de guerra vermelho meditabundo, embebido por pétalas em prata e galhos d’ouro, enquanto dois dragões de guerra Cao-Cao lhe desbravam o ventre servindo como aparato ao cordão branco metaforizando um cinto em seu quimono para a Batalha do Penhasco. A lança sangria do traje, aparando seu equilíbrio náutico entre as madeiras da nau, deixava-se vagar através do vento de rebordo; nascedouro de ondas itinerantes a perambularem um tango em desalinho entre tecidos azuis da roupa.

Porém, a realidade impera no adorno muro de tijolos samurais que impedem Seu José de tornar-se imperador lhe batendo ao rosto tal podre cotidiano na forma dos dois artefatos que fazem limite à metáfora de queijo prostrada a sua frente: Do lado direito um portão e no esquerdo a pichação de um enorme pênis com os seguintes dizeres: Nunes pega no meu poste! Seu José não olha o membro verde endereçado ao prefeito, menos ainda se encanta com o portão vomitando zinabre. Apenas finge ver o que olha enquanto parece coçar a lateral esquerda da sua perna direita. Passo ao seu lado e aceno. - Dia seu José! - Bom dia Zé.

Eu não sou Zé e eu não sei realmente se José é seu primeiro nome. Sou Zé pois toda a vez que ele me avistava junto ao finado Fonseca, estava sempre o chamando de Zé: - Vamos Zé - Vamos fazer xixi Zé! - Zé, para de cheirar aí, Zé! Transmutei-me assim em Zé no entender do possível José. Ele me viu carregar Fonseca dois lances de escada pelos dias em que a escuridão assaltou o prédio, pois somos residentes diacrônicos de uma câmara de gás que às vezes fica completamente às escuras. Seu José foi o primeiro vizinho a me parar no meio da entrada e fluir em olhos saudosamente úmidos que sentia muito pela morte.

Eutanasiei meu filho havia trinta e cinco horas, dezenove minutos e seis segundos. Ele, senhor de alterados metros e mãos metrópoles, tocou em meu ombro e o tempo arremeteu voo na direção do primeiro moinho de vento o qual valeria uma vida de lutas. Choramos juntos. Eu nunca chorei nos braços de outro homem antes. As lágrimas diluídas nos braços de meu pai eram respingos das pancadas no meu rosto.

Hoje, observado pelo muro queijo, meu vizinho parecia incomodado. A coceira na perna cheia de ciúmes exigia todos os dedos. Seu José, como eu, não tem emprego fixo. Enquanto seu ésse duplamente roda ao infinito por subempregos ou oportunidades de rastilho, meu zê estapeia-se nos cantos agudos de quem por conta da estrutura não anda em círculos viciosos, a não ser àqueles que o privilégio da escolha permite. O mundo enquanto dele explode; enquanto nosso, queima. Pensei que seu corte estava cicatrizando depressa demais, levando em consideração todo o terror que passara em menos de uma semana.

Toda manhã de uma quinta feira recorrente se faz maestrina em pequenos gestuais cotidianos, conduzidos por um cartesiano spalla de preciso tempo. Entre tons de percussão motorizada, quase sempre pelas seis e meia, hora em que diferentes matizes com asas e cantos elaboram uma cimeira sobre o destinos das frutas e sementes postadas pela vizinha na noite anterior, pode-se ouvir os primeiros andares do ônibus que cruza pela rua da casa. Seguem-se sempre, não necessariamente na mesma ordem, as ambulâncias, viaturas, concordes terrestres com suas caixas de transporte, e linguísticos fornecedores de pamonhas ou frutas.

Com o anoitecer do dia, explosões solares de minuto após minuto trocam tonalidades com o que sobrou das sombras noturnas pelos rebordos dos móveis. Vênulas das janelas descrevem diagonais assimétricas atravessadas pela luz a romper pequenas partículas de poeira, residentes tanto em vítreos condomínios como nos jardins japoneses que lhe dão armadura; onde é possível ver as marcas dos arados de areia percorrendo o composto um tanto amarelado, ponteado por pontos marrons da outrora tinta formando desenhos circulares, e caminhos traduzindo meridianos de energia terminados na linha divisória da moldura de ferro e seu vidro antigo.

Nesta manhã de quinta feira, entre o final do percurso solar pela mesa de trabalho e o soprano da sexta ambulância, era possível ouvir Seu José conversando com o porteiro do prédio vizinho e ter a certeza da presença de um feriado; pois nesses dias era aquele senhor dos braços que amparam lágrimas de luto que substituía o zelador oficial do condomínio. Isso por conta da reforma trabalhista do governo Temer, instalada após o golpe parlamentar de Estado, que permitiu diferentes graus de abuso embebidos por teatro do absurdo. Foi também em uma quinta feira, mais precisamente no dia vinte de setembro de 1821, que Francisco José das Chagas, provável dono de um diminutivo nominal tal qual Zé, subiu pela primeira vez a escada do cadafalso onde seria enforcado. Eram onze horas da manhã quando os trabalhos da sentença dada dias antes iniciaram-se.

Mesma hora aproximada onde seu José caminhava pelas escadas do prédio vendo se as janelas entre os andares estavam ou não fechadas. Sempre que possível, chegando aos olhares mais elevados do concreto percebia tudo tornando-se minimamente plausível ao mundo, tudo o que se mostrava tão diminuto daquele ponto, poderia atingir desproporções de um transtorno irremediável quando vistas no mesmo plano. Como se fosse possível criar em um laboratório orgânico o máximo sentido através do tamanho das coisas; nascidas diminutas oculares até os limiares de loucura que a cidade apresenta em seu cotidiano. Todas encadeadas de maneira lógica e com seus devidos nomes definidos, mesmo àquelas coisas que teimam nascer em planos absurdos, os quais não utilizam-se de denominações concretas para que sejam sentidas até o fundo da alma.

Chaguinhas, como Francisco era chamado, mesmo posicionando-se em um alto palco só conseguia pensar como sua situação para além do plausível - Era de uma completa irracionalidade! Ele, soldado do Primeiro Batalhão de Caçadores da cidade de Santos, passou seus primeiros anos militares percebendo que a alforria prometida pela predisposição poderosa por pausar sua própria vida, em favor de uma imagem diminuta de nação, possuía o inverso tamanho de seu sonho. Cinco anos sem salário, condições de trabalho derivadas da escravidão que lhe foi prometida acabar, companheiros presos pelo simples discordar de sua condição e como única certeza o descaso nas decisões de homens com tamanho concebido através dos andares mais elevados. Seu José, após a conferências dos onze andares trataria a questão das lixeiras no condomínio logo em seguida. Esgotado, Francisco resolve tomar os meios de reprodução escravocrata. Com outros soldados também pretos, também sem receber salários e também transformados em massa de manobra, rebelam-se. Libertam companheiros presos e tomam a Casa de Pólvora e Trem em menos de vinte e quatro horas.

Entretanto, para manutenção do Estado é necessário manter o descaso aos povos por ele escravizados, o que no século XIX era estratégia herdeira pelo menos desde 1765 - ano em que foi criada a Capitania de São Paulo. Governada por um mandatário e um Capitão General, o pedaço de terra roubado dos povos originários era cultivado com uma outra camada de descaso, visto as espécies utilizadas para cultivo e desenvolvimento da agricultura não locais - mas trazidas da Europa e Índia. Enquanto o extermínio criava-se oficializado, a posse das terras eram traficadas entre familiares que nem ao menos respeitavam qualquer tipo de ordenação, como por exemplo Álvaro Pires de Castro e Sousa, o Conde de Monsato, que apropriou-se das vilas de Santos, São Paulo e São Vicente indevidamente. Terras roubadas de uma outrora também roubada.

Após longos anos de descaso governamental destilando dentro da população a cognição desse modo de vida como aceitável, moral e cristão, governava ao tempo daquela atual São Paulo - João Carlos Augusto de Oeyhausen Grevembourg. Nascido em berço esplêndido, descendente da Casa Titular Portuguesa Alorna e Assumar educou-se em Viena e chegou à colônia portuguesa em 1799.

Condecorado com honrarias militares e salários exorbitantes tornou-se governador da Capitania do Ceará, geografia que de acordo com o cronista Otelo de Sousa Reis, era infestada por problemas dos feudos - resolvidos através da “disciplina, obediência a lei, a ordem, e com o princípio da autoridade”. Depois do controle da situação cearense, foi enviado ao Mato Grosso onde passou onze anos envolto em promoções. De Tenente Coronel adido do Estado Maior até Brigadeiro. Durante todo esse tempo sua única função era manter a ordem exterminando os indígenas que habitavam àquela região. O descaso do Estado era disfarçado então na promoção da paz colonial contra as “terríveis atrocidades que os índios eram capazes de perpetuar”.

Depois de seus assassinatos, a estrela que parecia não derreter rumou ao lugar cuja ideologia se encontra com o descaso e a morte: A Capitania de São Paulo. João Carlos tinha como vice José Bonifácio e como soldado em Santos, Chaguinhas, agora preso pelo Batalhão de São Paulo na Casa de Câmara e Cadeia desde o dia dois de setembro de mil oitocentos e vinte e hum. Tempos depois subiria o Morro dos Enforcados - local próximo do que hoje é morada da Estação de Metrô Liberdade.

Desbravando as escadas e os espaços deixados vazios dentro do prédio, Seu José temia que o descaso do Estado deixasse mais marcas que as normalmente refletidas diariamente. Em quintas feiras somadas ao permanecer sem energia elétrica, ele também assumia a segurança da portaria no período da noite e não havia argumento que o dissuadisse de não permanecer ali.

A maioria dos moradores -revisitando o desamparo infantil nessas ocasiões- arremedavam voos sabáticos aos atracadouros de parentes ou amigos, deixando por vezes partes de suas casas abandonadas, alimentadas por insistentes mãos trêmulas dos restantes moradores tateando medieval medo de algum tipo de inseto ou mamífero roedor passarem por debaixo do abandono em madeira das portas e arrancarem algum pedaço dos dedos ou rostos. Os que ficam obrigatoriamente lidam com o descaso, que é quase uma manifestação hereditária.

Chaguinhas, depois de dias preso, caminhou pela região conhecida como Morro dos Enforcados, localidade da atual Igreja da Santa Cruz dos Enforcados em frente ao futuro contraditório metrô Liberdade, local qual se encontraria com a bestialidade que ao longo do tempo moldou o imaginário punitivo da população, A Forca Paulistana. Abandonado como se fosse morada, permaneceu na manhã do dia vinte de setembro em uma cela convertida no póstumo velário da contemporânea Capela dos Aflitos. A população que ficava no local, obrigatoriamente lidaria com o descaso do Estado. Seu José desdobra a montanha férrica que separa a sala de entrada do prédio da garagem, e avista os seis cestos de lixo orgânico em riste esperando que todo o ritual da decomposição seja iniciado de maneira correta pelos moradores. O de cor amarela, formando um estranho mosaico com o verde, tem seu receptáculo plástico mais cheio - é por ele que aquele homem de vontade inabalável começará. Onze horas da manhã, Regente Feijó testemunhava a caminhada do José de outrora. Deambulação de novena que seria cronificada, tornando-se único registro por escrito da história.

Ao pé da forca, o carrasco e o general do batalhão esperam; aos pés do palco uma pequena multidão se aglomera em suspense para poder registrar uma nova tragédia. Um descaso social perpetuado até o contemporâneo espetáculo das fotos de terceiros que sofrem com desastres naturais. Francisco das Chagas sente suas mãos apertarem enquanto o oficial militar discorre sobre como o soldado não seguia os preceitos da formação de um cidadão de bem. Nas mesmas mãos nascem dois orifícios. Seu José separa a lixeira amarela da fila das demais e aplica um nó de plástico no recipiente que sente assentar-se de vez no enorme balde. Percebe o peso do saco de lixo e tem a certeza de que precisará utilizar a força das pernas para movimentá-lo, enfim retirando-o do seu calabouço cartesiano. Coloca uma perna na borda do balde e segura firmemente toda a branquitude da sacola. O nó da corda aperta o pescoço de Chaguinhas exatamente ao meio dia. A população estarrecida, sem desviar o sedento olhar, acompanha quando o carrasco inverte a mágica da levitação ao avesso, liberando o cadafalso ao mesmo tempo que a corda chicoteia os segundos finais da vida do homem preto. Ouve-se um estalo. Seu José começa a fazer força com os braços e o saco plástico de lixo parece teimar em permanecer dentro de sua morada. O percebe empacado por demais e precisará fazer um esforço geométrico. A corda arrebenta, Chaguinhas cai vivo e se levanta um pouco machucado pelo encontro com o chão que lhe abençoa.

Toda plateia levita e percebe a fronte do general encolher, ao ponto das veias saltarem do palco ao chão sem perder uma gota sequer de sangue. O enforcado em pé está vivo. Algumas senhoras fazem o sinal da cruz imaginando ali ocorrer um ritual pagão. Outras, mais devotas ainda, negam a possibilidade d’outra religião e salivam no canto da boca um léxico de milagre. Francisco será enforcado pela segunda vez às duas horas da tarde.

Seu José não consegue retirar o lixo do balde e percebe que o forçar mais romperá o plástico e todo o conteúdo orgânico será espalhado pelo chão. Indeciso sobre deitar ou não o recipiente, fazendo escorregar o invólucro de poliestireno, ele reflete como os moradores poderiam ajudar mais na questão do assentar o lixo. Respira fundo, aguarda sua paciência chegar a galope de profundas pradarias orientais, daquelas que defloram montanhas paradas no tempo. Chega combalida, porém ainda viva. Do ponto onde o sol marcava o meio do céu até as duas horas da tarde, era possível ouvir pequenos pedidos de clemência oriundos das vozes que decidiram ao invés de testemunhar a história, fazer parte dela. A população se pergunta como pode um utensílio do Estado não funcionar e murmúrios acompanham a segunda subida de Chaguinhas através da vida ao palco mórbido.

Duas horas da tarde. Dois nós de uma corda duplamente reforçada amarram a traqueia do homem preto uma vez mais. O sussurro por clemência se torna uma frase - Justiça! As pessoas, que durante a pausa passaram de língua em língua a novidade, agora eram muito mais do que as pequenas testemunhas da tragédia. As vozes ganham corpo -Justiça! O oficial militar treinado em controle tem a certeza de que povo não serve para falar e coloca seus guardas cercando-o. Enquanto a movimentação dos policiais decapita o desejo, plácido carrasco abre a plataforma. Chaguinhas uma vez mais voa na direção da morte. A corda rompe outra vez. O homem que negou permanecer escravo, também se nega a morrer.

Deitar o cesto de lixo no chão resultou em nulidade. Seu José, percebendo que seu tempo está tornando-se escasso resolve colocar as pernas ao sacrifício novamente. Acerta a posição na borda e fará toda a força que puder para impulsionar o plástico de uma vez por todas para fora. - Nos braços uma tira de aço, nas pernas uma base de concreto.

Temendo uma comoção maior, já que os gritos de -Milagre! -Justiça! -Libertem Chagas, estavam em tom acima, o general decide adiar um pouco mais a terceira tentativa. Quatro horas se passam e a população acumulando-se aos pés da forca em rosários babilônicos não será contida através da parcimônia. Os policiais militares de outrora despencam seus cassetetes em quem se atreve ao expressar. Arremessam corpos protestos contra o chão, cercam o aparato de morte com suas vidas e constroem um corredor para Chaguinhas subir ao dispositivo uma vez mais. Seis da tarde.

O militar da alta patente se encarrega do ritual, armado com uma tira imensa de couro que será amarrada junto a corda dupla no pescoço do homem sentenciado pela terceira vez por querer viver. Ouvem-se novenas entoadas em mesquitas de amparo. O sangue dos ferimentos de Francisco levitam formando mãos de benção, enquanto senhoras mais velhas dançam acordes que são ouvidos para além do Cabo da Boa Esperança.

Seu José em um arremate de último esforço consegue deslocar o saco plástico, que tal qual explosão de lava alardeia um voo inequívoco. Os braços estouram vênulas hipertensas enquanto o recipiente escorrega pelo espaço. Tamanha força feita que nem ao menos percebe quando a ponta de uma placa tectônica de vidro lhe rasga a parte interior da perna. Ao tentar retirar o membro inferior da linha de tiro vítrea, o balde de lixo imprime fuga e uma garra envereda por dentro do músculo do homem de mãos trêmulas. Ele ouve o ganir do objeto abrindo caminho através de sua pele, passando pelo lado do joelho e tentando alcançar a artéria localizada no topo da coxa. Seu José urra e o prédio treme.

O caco atraca a dez centímetros da morte imediata, golpeando o sangue pelo chão da garagem. Sozinho, vertendo, e com uma dor maior do que a tentativa de manter-se em pé, sucumbe e reza. O fio hematócito rege um eletrocardiograma fúnebre que corre pelos vãos do chão de cimento recortado da garagem e vai na direção do ralo, por onde se enxerga uma barata tateando salvaguarda enquanto sente os primeiros banhares vermelhos de Seu José lhe acertarem as asas. Não há mais controle da multidão e o general apressa o ato. Coloca Chaguinhas em posição, aperta o nó do couro com dois torniquetes de bíceps e atrela todo o aparato policial à corda duplamente facínora. -Libertem Chagas! - Milagre! - Libertem o homem santo! Os policiais para cada reza deslocam duas mandíbulas com seus cassetetes, o carrasco já não tem controle de seu próprio medo e pede outro milagre que lhe faça ter pelo menos um terço de seu cérebro atrelado ao corpo inteiro. Não há tempo do rosário encapuzado.

O general toma dele a alavanca e seguido de um berro primal solta o corpo do homem uma vez mais ao destino. O tronco malabarista transpõe o ar, as mãos resvalam nas bordas do cadafalso. A corda se rompe pela terceira vez. Silêncio. Outro silêncio e mais um profundo silêncio. Ouve-se um passo. Francisco José das Chagas, cansado respira e se levanta. A população certa de que acompanha a transmutação de um ser humano em santo arremessa-se à forca. Vai destruí-la. Tomará o poder para si e libertará o soldado. Ouve-se um rugido e os pés de Chaguinhas parem duas feridas pelas quais se enxergam dois pequenos holofotes de luz azul. A lâmina de uma espada corta a face de coragem e o povo recua. Outro silêncio estarrece os olhos arremessados ao reverso que acompanham o militar saltar e espancar violentamente Chaguinhas. O carrasco também esfola-o com chicote enquanto reza. Mais dois soldados juntam-se. Não se gorjeiam mais gritos, apenas são sonorizados estampidos da pele fustigada. O sangue reflete nos rostos em pânico enquanto embebe o ar de extermínio. Tal dono da chibata segue a carnificina enquanto não tem a certeza de que tudo está acabado. Regente Feijó contou meia hora de violência em três minutos.

Eram seis da tarde quando o Córrego Itororó tinha a cor das chagas de Francisco. O trecho fluvial que durante a construção da Avenida Vinte e Três de Maio foi aterrado em descaso junto aos irmãos Bixiga, Saracura, Augusta, Anhangabaú, e durante o processo revelou a presença de ossadas humanas -em sua maioria de escravos assassinados- naquele dia foi surrealisticamente habitado pelo sangue de mais um homem preto assassinado pelo Estado.

Seu José consegue rodar seu tronco de lateral para dorsal e tenta dobrar o joelho da perna sem a quase amputação. Ao redigir o ato anatômico percebe estar dissolvendo-se. Seu inteiro, enquanto sangra excessos barométricos, aos poucos revela perder a tez da pele. Apagando-se quanto mais sangue se esvai, observa o corpo ganhar uma translucidez contornada por traços feitos com carvão no chão de cimento. Percebe que seu peito tem um pequeno traço que mostra o músculo peitoral quase como o desenho de um seio; na lateral esquerda as linhas são mais brutalizadas, grossas e profundas.

Tenta levantar-se mas não tem forças e nota que ao girar seu tronco pelo chão as riscas mais inurbanas em carvão deixam manchas oralizando uma sordidez do destino, como se o sangue saído da avenida em sua perna se tornasse um selante das falhas do chão da garagem. Seu corpo aos poucos tornando-se um prisma oco, enquanto o tracejado em carvão borra o cimento por toda a extensão de seu desespero. José então olha a perna que acolheu o enorme pedaço de vidro e vê no início da linha de corte o desenho de uma mão espalmada em sangue que se repete na altura de sua virilha, como se a morte escalasse seu corpo.

Francisco está deitado em decúbito dorsal. Seu braço esquerdo abduzido, transpassa um ângulo tão alto que aos olhares dos passantes parece estar congelado no tempo. O cotovelo fletido descreve uma cinemática de dicionário cinesiológico ao permanecer em exatos oitenta graus. A mão parada com dedos dobrados ao acaso como se pinçar o ar lhe trouxesse sustento. Sua cabeça em hiperextensão apoiava-se aos olhos milagrosamente fechados, rodeados por arbustos azulados por folhas verdes que arrebentam ao redor de seu corpo pelo chão de terra. arbustos azulados de folhas verdes que arrebentam o entorno de seu corpo pelo chão de terra.

Recostado como quem dorme em uma posição forçada, os músculos da face expostos pelas chicotadas que fazem fronteira aos hematomas cozidos. Esse movimento de cabeça evoluiu tronco abaixo descrevendo por suas costas um arco tal qual ponte dissociando territórios. As costelas paralisadas em expiração traqueal forçada constroem uma marquise onde o músculo diafragmático torna-se parede de concreto. Outros cortes ainda sangram; principalmente da costela exposta no lado esquerdo do corpo não vista pelas pessoas que rezam ajoelhadas.

As feridas abertas perfazem paradigmáticas relações unidas pelo sangue que escorre. Todo o corpo agora parece adquirir uma cor arroxeada pelas pancadas instalando-se em cronicidade. As pernas repousam, no pequeno serrado feito pelo terreno, esticadas e com os pés fechados em ângulo valgo; sustentam a contração involuntária das coxas enfermeiras nos dois joelhos fraturados e revirados. As duas pernas são formadas por listras nos locais onde os cassetetes açoitaram a musculatura depois da terceira salvação. Os cortes ampliam-se em tempo recobertos por pedaços de madeira, corda ou borracha, atiçadas pelo fardamento dos policiais ou pelo regurgitação da forca. Ajoelhadas ao lado do corpo estão duas mulheres de vestidos quase completamente iguais. Dançam descontentes removidos em suas métricas pelo vento norte que sopra no local do enforcamento. As vestimentas apenas diferenciam-se por uma linha vermelha que contorna a roupa daquela aos pés de Chaguinhas.

A mulher velando os pés do homem morto encara os passantes em olhares inquisitivos, e ao mesmo tempo parece velar uma justificativa pelo que faria a seguir, como se tal atitude fosse a única obrigação que alguém em mínima decência e coragem descreveria. Seus olhos explodiam uma luta interna entre a culpa e o ódio contra àquela situação. A boca atônita, afoita e aberta entremeia. Os cabelos castanhos escuros amendoavam seu rosto em nervosismo ao nariz milimétrico, alinhado perfeitamente com o mamilo exposto de seu seio esquerdo que repousava fora do vestido em sua mão. Mimetizando o flagrante de uma atitude imensurável, desculpando-se enquanto acusa as pessoas e o descaso pelo que teria de fazer.

A segunda mulher, com o vestido completamente branco sem riscas avermelhadas e de breve abertura até o meio do osso esterno, está ajoelhada na altura do peito de Chaguinhas, observando seu rosto em certeza de olhos invariáveis. A boca simétrica, um portão fechado adornado por uma tristeza econômica e precisa, como se engolisse o luto. Mãos ao chão em braços de marquise, observa todos os contornos do rosto redobrado do homem. Os cabelos divididos ao meio, resignados tal qual seu olhar, desesperados por poderem gritar, porém, resolutos em um silêncio anacrônico envolto por todos os versos das orações que eram ditas silenciosamente.

Seu José ainda sangrando deitado aos pés da garagem aglomera últimas esperanças; respirando um trovão impulsiona seu tronco acima. O corpo perde consciência em um horizonte escuro e apenas uma pequena linha entre o concreto e o sol lhe mantém as vistas. Por segundos percebe uma linha vermelha contornando um vestido branco de uma mulher com o seio esquerdo exposto. Tenta uma vez mais. O tronco cambaleia e a mulher do vestido parece correr. Outra tentativa e enfim consegue manter-se sentado atentando-se ao sangramento intenso; tira sua camiseta e rasga uma tira que fará o papel de torniquete na base da coxa.

Nunca em toda sua vida teve de lidar com algo parecido, o sobressalto de não saber quando a inegável morte lhe será certeira. Esse conviver minuto por minuto com a visão dela se aproximando-se, a ansiedade do não ter o controle do exato momento que lhe atingirá o peito. O desmedido em avançar lento da situação de contrário impossível. Essa era a pior parte. Saber que a morte é inevitável não é desconhecimento de viver, entretanto, tê-la vindo pelo canto do olho exibindo tamanha certeza, desencadeia arquejos de cantos cúbicos. Mas aquele homem de mãos ataduras precisa continuar vivendo. A calma que escapa a cada pulsar do vaso sanguíneo estridente não lhe remove a vontade de gritar por socorro e pela esposa que aponta na porta do supermercado localizado em frente ao prédio.

Aos pés do enforcado, a mulher de vestido listrado em vermelhas linhas volta seus olhos aos dele. Sua mão esquerda amansa a pele de seu seio e sente seus dedos estremecerem enquanto ao redor do quadro a população entoa cantos religiosos em rodopios, utilizando terços e velas percutindo o couro ancestral em mantras.

Ela suspira tal qual fosse uma rotina inserida no futuro tudo àquilo que seria executado, então aperta a ponta do mamilo ao mesmo tempo que pressiona a carne do cesto lácteo. O líquido exalta um exato salto em sépia oleaginosa. O bálsamo aterrissa na maior lesão do tronco de Francisco e quando eriçada pele sente o primeiro contato a chaga na mão esquerda se fecha. Dentro da ferida, as linhas de cura transmutadas pelo líquido lutam aflitivas tentando refazer vida nos resquícios de borracha das botas policiais e pedaços dos cassetetes, que violentamente mantém a morte da pessoa preta ainda sangrando. Para cada costura proporcionada, para cada aumento de pressão no seio, para cada novo jato, a borracha se expande e a madeira enraizava na carne. O curativo líquido não consegue retirar o martírio violento dividindo a pele do homem como capitanias hereditárias e a insurreição contra o cotidiano torna-se um sonho mórbido, em que todas as costuras revolucionárias da alma embebidas maternalmente naquele seio, transpassadas são pelo descaso colonial, do Estado e da sociedade.

O tempo que virá toca os ombros da mulher enquanto ela suplica possibilidades, suas mãos não conseguem manter a pressão e nos segundos finais a morte retira sua mão esquerda da manobra, escondendo-a dentro do vestido. Chaguinhas suspira pela última vez eram passadas seis horas da tarde.

Guilherme Derrite, ex policial militar, tem como identidade sua branquidão. Também como traço identitário atual é Secretário de Segurança Pública de São Paulo.

Em entrevistas, critica colegas de farda que mataram menos de três pessoas em cinco anos de serviço, sem revelar quantas pessoas já matou. Uma certidão criminal investigada pela Revista Piauí, residente nos registros do Tribunal Superior Eleitoral pela candidatura a deputado federal, possui seis inquéritos mostrando a participação do secretário em operações que resultaram dez homicídios no período de três anos. O sétimo inquérito, não morador da certidão do TSE, discorre sobre uma operação onde seis pessoas foram mortas e três policiais presos por tortura e assassinato. São ao todo dezesseis pessoas cravejadas por balas.

Mesmo sem a certeza de quem puxou o gatilho, apesar de todos sabermos quem foi, a última operação motivou a saída de Derrite da Rota, por ficar entendido que sua letalidade era alta demais até para os padrões do grupo de operações especiais de São Paulo, nascido dos porões do DOPS e seus grupos de extermínio durante a Ditadura. Sobre sua dispensa, o secretário afirma que foi “Porque eu matei muito ladrão. A real é simples. Pá!”. Wallace Faria, condenado a cento e dois anos de prisão em dois depoimentos dados à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, entre junho e agosto de 2019, afirmou fazer parte de um grupo de extermínio denominado “Eu Sou A Morte”, cujas operações eram de conhecimento de Guilherme Derrite.

O descaso do Estado mais uma vez criou um monstro. Perpetuado pelo governador Tarcísio de Freitas, que entre os anos de 2005 e 2006 fez parte das força militares brasileiras na chamada Missão de Estabilização das Nações Unidas no Haiti. Investigada, estudada e acusada de cometer atrocidades com a população local; entre elas o estupro em troca de comida contra mulheres e meninas. A chegada dos capacetes azuis ao Haiti disparou diversos relatos, acusações e denúncias de estupro, prostituição forçada, escravidão sexual, assédio e pedofilia. (Toledo & Braga, 2019, p.7).

No extenso documento chamado Assembleia do Condomínio não há item que descreva os procedimentos regimentais sobre imensos sangramentos no chão da garagem, situação em que ainda se encontra seu José amparado aos pés pela esposa aguardando a chegada da ambulância. Também não há qualquer seção, artigo quiçá inciso sobre o tema descarte correto de lixo inorgânico ou o contrário e nada sobre como descartar um artefato de vidro que se encontra aos cacos.

Um vaso, que pela quantidade de detritos deveria descrever uma altura aos mínimos trinta centímetros e de espessura maciça, foi a arma escolhida por um morador descaso. As seis lixeiras sinalizadas não o convenceram pelo despejo correto do cortador de artérias que permaneceu sem invólucro protetor e solto dentro de uma sacola de supermercado até o momento do entalhe homicida. A possibilidade de um objeto de tamanhas proporções causar um acidente de tal imensidão jamais passou pelos pensamentos do vizinho que segue atualmente sem rosto, e talvez até por esse motivo, sentiu-se livre para perpetuar tal outrora falta de cuidados a outros seres humanos - O que quase custou a vida de mais um homem preto.

Seiscentos e setenta e três é o número de pessoas mortas por policiais militares paulistas de janeiro a novembro em dois mil e vinte e quatro. Uma média de duas pessoas por dia. A métrica de extermínio nascida em descaso político, deixa pelo caminho cacos de vidro prontos para arremessar qualquer artéria ao limbo.

Gabriel Renan da Silva Soares foi morto pois roubou um pacote de sabão do supermercado. No dia três de agosto de dois mil e vinte e quatro, um policial militar deu dois tiros na cabeça de um suspeito rendido em Guarulhos -tudo ficou registrado na câmera corporal-.

Um morador de comunidade na zona sul foi atacado por policial militar sem nenhum motivo com gás pimenta ao caminhar sozinho pelas ruas de sua própria vizinhança; Francisca Marcela da Silva Ribeiro foi morta no bairro do Ipiranga por balas disparadas por policiais militares em perseguição a dois suspeitos de furto; no mesmo bairro uma viatura dos servidores do descaso assassino capotou durante uma corrida urbana entre policiais. Na cidade de Bauru -interior do estado- Guilherme Alves Marques de Oliveira e Luís Silvestre da Silva Neto foram alvejados durante uma intervenção policial no Jardim Vitória; seus familiares protestaram e durante o velório a mãe e o irmão de um dos meninos mortos foram agredidos por policiais.

A cidade de Santos, onde Chaguinhas era soldado, palco de uma das maiores operações de limpeza étnica já vistas na capitania de São Paulo no início do ano, assistiu a morte de uma criança de quatro anos baleada no Morro do São Bento por policiais militares que envoltos em mais descaso perseguiam sabe-se lá quem.

Um estudante de medicina foi morto com tiro à queima roupa no dia vinte de novembro na Vila Mariana aos vinte e dois anos. Um homem foi jogado de uma ponte na Cidade Adhemar durante uma abordagem policial e sua família ao dar entrevistas criticando o descaso recebeu visitas no melhor estilo “a casa da vovó” de policiais civis disfarçados.

A letalidade da polícia militar pelas mãos de Derrite e Tarcísio subiu quarenta e seis por cento.

Não é possível traçar uma origem ou vértice da espinha dorsal que desenhe, dê conta, e porque não definitivamente defina o local exato do nascedouro do descaso humano paulistano. Na falta de melhor definição, inicia-se pelo dicionário: - Descaso; substantivo masculino, des·ca·so. Falta de apreço ou consideração; desconsideração, desdém, menosprezo. Falta de apuro ou de esmero; desleixo, displicência, negligência: “Todos os voos estão atrasados. O saguão do aeroporto está uma confusão. Descaso das autoridades? De quem é a culpa?”.

De resto apenas dúvidas. Seria o Marquês de Aracati, Oeynhausen, o marco inicial pois refratava o genocídio colonial contra os numerosos “bugres que aterrorizavam a população”, injetando no futuro do país a genética de descaso com as populações originárias e escravizadas? Seriam os Batalhões Das Capitanias que prendiam soldados apenas por pedirem o que lhes é de direito e fora prometido? Talvez esses mesmos Batalhões tiveram papel importante, visto perpetuarem o extermínio escravocrata e o descaso do Estado às populações fragilizadas?

Outros suspeitos se avizinham pelas arestas tais como os grupos de extermínio ou esquadrões da morte durante os vinte e um anos de Ditadura Empresarial/Militar, que aterrorizaram populações pretas, pobres, movimentos como MNU ou os Movimentos Estudantis? Ou ainda, seriam os culpados históricos tanto o governador de São Paulo que participou de uma investida assassina no Haiti ou seu secretário de segurança atual, com todo o corpo coberto de sangue que não é dele?

Existe derradeira tentativa em encontrar um culpado. Deve definitivamente ser o morador que simplesmente despreza a convivência, incapaz de entender o existir de outro ser humano obrigado a pegar o lixo alheio com objetivo de poder sustentar e alimentar sua família, e resolve colocar pedaços enormes de vidro em sacos plásticos anêmicos, provocando a quase morte de uma pessoa.

O primeiro nome de seu José é Antônio.

O segundo nome do Descaso é Extermínio.