O motor à diesel de uma motoniveladora Caterpillar modelo Patrol 120 possui duas mil rotações em seus seis cilindros, que são distribuídos em um motor inquilino com faixa de potência calculada em noventa e três quilowatts, flanando um torque máximo por aproximados oitocentos e vinte e dois Newtons por metro quadrado.
A lâmina com três metros e setenta de passada e sua borda cortante de aproximadamente dezesseis centímetros aterram-se ao solo como súplica. Tal alquimia mecânica costumava caminhar por entre restos de outrora silvícola, hoje respirando com ajuda d’algum chá de Jurema ainda desconhecido por psiconautas. Seu som é caracteristicamente amargo nas bordas, de cores aríete, transbordando ondas circulares crescentes de pavor. É um monólogo feito aos berros, como os punhos de um pai presente afundando o maxilar do filho.
Foram necessárias duas máquinas desse tipo destinadas à abertura da Alameda Lourenço Avelino, no bairro de recente manjedoura chamado Jardim das Paineiras, local em que o Banco Nacional de Habitação resolveu colocar seu esforço para mostrar que os estertores da ditadura militar brasileira renderiam frutos futuros aos menos favorecidos, dentro de uma cidade marcada pelo extermínio. O asfalto quando rígido cortaria o bairro em toda sua extensão superior lateral, terminando nos limites de um terreno insistentemente roçado por sombras. Lugar de pouca habitação do sol, que se escondia nas fibras da porteira de madeira mumificada por poucos minutos durante o dia.
Enfáticos raios esgueiravam pelos arrabaldes da mastodôntica fazenda latifundiária, ainda tecendo o eco dos gritos gestados pelas mãos de Bandeirantes.
A terra roubada desde a metade do século XVIII sorria um tabaco amarelo à população local. Locais inexistentes fisicamente, pois as únicas restantes auras eram os resquícios dos gritos indígenas Caingangues, que conheceram o amargo das bordas aríetes mais cedo. Os motoniveladores da Coroa, ao alagarem as margens do Tietê com sangue, resolveram pescar; talhados em ignorância sobre a cultura que exterminaram.
Pelas lâminas de assassinar peixes, capturaram um bagre enorme e lutador carregando nas guelras a lenda Tupi de Ya-Hu. O filho mais rebelde, apaixonado pela cunhã a ser trocada como moeda em um acordo de paz com a tribo dos Coroados. Contra o pai, assassina e acossa os representantes da tribo vizinha até a Serra de São Paulo, arando seu desejo com os corpos deixados pelo caminho. Ferido de morte resgata o amor, porém, cercado pela retaliação, afoga-se no rio que lhe beijou abrigo. A redenção liquefeita o transforma em peixe. O filho em guerra, e seus descendentes fluviais, farão morada secular por todo o caminho feito em batalha.
Na encosta do morro em que os Bandeirantes pescaram, nasceu Ya-hu e a cidade que tomaria seu nome para depois esquecê-lo.
Nem mesmo a fúria de Jahú, fora capaz de parar as máquinas asfálticas na cidade. Alameda aberta, vivendo em piche e vestida pela esquina da Rua Antônio Ferreira Dias, fora inevitável como toda mecanização da vida. Casas planejadas com mesmo número de quartos, mesma disposição sala-garagem com uma rampa que mais parecia lixa azeda. Iguais.
Casas iguais, Bandeirantes iguais e assassinatos iguais.
Árvores milimétricas nas calçadas catedráticas em seus dois metros e meio de passeio semi público, adornadas por espessos meios fios que canalizariam o roubo das águas. O cheiro quente do alcatrão vertendo de caminhões fantasiados vulcões, enquanto dezenas metódicas de capacetes sem rosto, impulsionados pelo cotidiano, fingiam desbravar um novo pedaço intocado de Mata Atlântica; outra vez morta.
A única coisa que destoava de toda história era a roda de carroça encruada no meio do muro naquela casa da esquina. Um cheiro de almiscarado tamanho seco e imensurável invadiria as unhas de quem ousasse tocar em seu raio. Uma imposição humana rompendo o concreto armado daqueles tijolos em curva simétrica, como um soco que abriu caminho pelo meio da garganta depositando em cada anel de cartilagem uma bomba relógio. Monstruosidade amadeirada tal lâmina de facão afiada que corta o braço de um colono em canavial. Das cores mortas, restava apenas o desgaste do tempo. O tracejado de fibras que certamente inalaram pedras e poeira enquanto percorriam distâncias.
Não existe registro de que específica carroça essa roda rebentou. Muito menos qual o tipo de transporte possível, visto o tamanho daquela besta. Especulações davam conta ser troféu familiar, corredor de felicidades pelas laterais em lábios tremulantes dos herdeiros e parentes; a tal herança orgulhosa de seus genes. Uma roda do carro de boi usada ao longo do tempo como aparato de tortura aos escravos fugitivos e indígenas remanescentes dos massacres colonizatórios. Boatos urbanos davam como certo ser o atropelamento da família de empregados, pegos utilizando parte do rio dentro da propriedade, o episódio que ocasionou a soltura do disco madeirado. Ao tentar fazer a curva pela sexta vez, visando passar por cima da cabeça do filho mais novo, o patriarca embeveceu demais a manobra. O caçula era o único corpo que possuía um tiro na nuca.
Era esta roda de carroça que fazia os olhos de Antônio rejuvenescerem cores hereditárias. Filho mais velho dos oito irmãos nascidos por casamentos consanguíneos nesta família fundadora e exploradora da cidade, tinha por incumbências guardar a herança do atropelamento e o final do bairro. Ninguém, dos novos moradores médios pobres ali instalados, deveria esboçar qualquer tipo de ideia comunista. Ideologia que deixava claro abominar, inclusive quando conversava em ocasiões formais; como quando seu filho mais velho quebrou um cabo de vassoura nas costas de outro aluno. Naquele dia, aos berros bradava ser coisa de mariquinha comunista aquela choradeira toda por conta de uma vassoura. Ao lado da roda de carroça, porém, os braços amargos longos carinhavam os raios ensolarados como um filho.
Seu rosto fomentando o gosto reinado que escorria pela lateral matemática de seu bigode; as suas terras, a sua roda, a sua casa, e o seu bairro.
Mediano em suor, que escorria por entre as têmporas, deveria naquele momento imaginar o tempo exato em que seu filho mais velho receberia de suas mãos a mesma demanda que seu pai lhe dera.
Guardar por qualquer custo a moralidade da família e da cidade que ajudaram a construir. O herdeiro da retidão a ser inevitavelmente curada pelo sal de suas costas, enquanto carregava as pedras das leis nas encostas daqueles morros de um povo sedento por um farol de costumes.
Antônio sonhava com seu filho vestido em terno de colunas gregas, adornando claves socráticas em potes de ouro, como o dono que nasceu para ser. Sentado em um trono de cadáveres nascidos no ensino médio, renegados até a universidade.
O corpo de translado lento, pelo fenótipo de locomotiva, alojando-se próximo ao portão da entrada e dispersando as pernas envoltas em denim surrado, incapacitaram Antônio de perceber o menino com aproximadamente treze anos escondido nas nuvens de capim mimoso, localizados na encosta de terra deixada pelas motoniveladoras. Jamais conseguiu ver tal adolescente camuflado passando em frente à casa, escondendo-se sempre na mesma mata, observando seus gritos ocos clamando ao filho que fosse sempre macho. Nunca viu os pensamentos juvenis ecoando nas touças de mato tentando entender os motivos dele nunca fazer absolutamente nada para evitar o que parecia não saber, mas que germinava.
Antônio apenas acariciava a roda. Ali, dono de toda a herança familiar de poder, escravidão e morte, jamais imaginaria que semanas depois, seu filho passaria sete quarteirões sendo o homem que ele queria, enquanto chutava a coluna do menino escondido nas nuvens de capim.