O sabão deslizava acalento de barriga.

A língua d’água avençava o tronco pelo mosaico de azulejos verdes e seus renovos amarelos centrais. Visto por retinas próximas e afastadas tais quais as minhas.

Paredes trampolins e falta de gravidade por entre os vasos vagas de garagem. Um mundo cheirando a rodopios acrobáticos, sabão e banho de mangueira.

Até minha chegada, precipitada pela falta de freio. Seu corpo desajusta a força, ultrapassa a fronteira de mosaicos e alça voo pela rampa da garagem. Sente roçadura da pele nas costelas, escarificando-a enquanto o cimento comia o orgulho de colher. Vi com olhos que não tenho o portão abraçar seu tronco escoriado. Aspirei o sangue mesmo sem nariz.

Ele, por sua vez, parecia-me uma tartaruga virada.

Tateando seus restos me aproximei, sem anúncio. Primeiro tentou pedir socorro, mas a voz timorou. Vagarosamente,o palato ao invés de ar arrecadou um soluço. Olhos que se enchem. Por minha culpa, se secam.

O cimento perde a cor. As gramas que fazem fronteiras nas lajotas somem; a rampa matadora se desfoca até virar nuvem de tristura. Um último fio d’água rola através de mim. Me aproximo outro passo levando comigo azulejos e vasos. Paredes e teto da garagem vão em seguida; são mais pesados por isso tomo mais tempo. Na contrapartida, contorno o destino com mais força. A tartaruga segue o desalento em avesso. Não há mais nada, apenas seu corpo raspado, só e sangrando.

Ninguém apareceu.

Sua voz lhe falha.

Eu o abraço.

Da morada que ali levantei, se fez o mundo ao redor.

Dos que não apareceram ao portão, nem ao menos para fingir espanto com a tartaruga revirada, duas figuras que lhe importavam estipularam uma distância ainda maior ao longo do tempo.

A primeira, não passava de uma azul. Perdida moça pós século dezenove. Proibida de usar roupas brancas, herdou como estampeiro o tempo dando-lhe aspecto de camuflagem. Nos braços, armas de arremessar vasos e carinhos amenos. A fiação verde passividade das veias cruzando suas pernas, pareciam apodrecer nas bordas. Mais externamente possuíam um aspecto cinza escuro de uma prematura saudade envelhecida. Na extremidade interna, um tom mais claro aos poucos destruía o que se esquecia.

Onde ela estava quando o portão estalou era um mistério. Ao passar dos anos descobriu que a probabilidade seria estar escondida, mimetizando o canto da parede, de portas fechadas e chorando; escondendo-se do cartesiano e livrando-se assim da vergonha. Todo cansaço absorvido pela teimosia involuntária da espera em vão a tornava uma mãe sem filho.

Vicejava menos que um abraço embebido em azul dureza.

Normalizei vê-la soterrada pela sombra de um vestido preto, marrom, ocre e de tons cinzas como suas pernas. Vez em quando, ao som de um suspiro, na ausência do filho, eu apagava as luzes enquanto ela soluçava.

A segunda era o pai.

Serpente amarelo esverdeada. Por dias encostado em um tronco de Der Goes sem folhas da mesma cor de sua pele; em tom mais escuro. Dono de dutos biliares espessados, sangue de cor epidérmica.

Vestia-se de Cronos, extinguia o sol em um eterno calar, sem futuro ou esperança. Os acordes cromáticos de seus braços transitavam entre verde de extremidade preta; mesma cor da extremidade direita do braço em cor amarela. Nunca deixava-se ver de frente. Apenas a sombra lateral nos cantos dos olhos e uma voz açoitando a consciência. Os passos squamáticos adestravam o pânico. Banhava-se em si mesmo, crescendo por entre trocas de pele a cada conjunto de ideias auto indulgentes. Seus falsos dentes rangiam tal portas envelhecidas que escondem martírios, mortes e maldição. Dono de algo que não existia, mas prendia toda uma casa ao redor de seus dedos, até o momento em que decidia estrangular a vida.

A picardia de minha presença só se fazia notar quando os torniquetes paternos esvaziavam o viver.

Até sobrar apenas eu, o velho amigo cinza do filho.

Existem dinâmicas dentro das amizades de longa data que destoam das simples sensações complexas.

Não apenas moldes de amor, companheirismo ou até mesmo salvação, aclaram os cantos semissecos vividos. Existem formações internas que nos moldam como indivíduos.

No meu caso foi a nicotina.

Muito antes de amparar as costas rasgadas pela rampa da garagem, o pai apresentou-me ao que em pouco tempo entendi ser a rotina imposta.

Enquanto a pele paterna amarelecia durante o café da manhã, inexistia frescor de memória ao vê-lo despejar na xícara de café dois goles adúlteros de uma bebida destilada com cheiro manco.

Poucos segundos depois seus olhos clarificaram-se tais raios de sol fluentes através das ramificações vítreas duma janela matinal. Só assim o amarelo da pele assentava. O pai sorria com a mesma intensidade do cerrar os dentes ao ver o filho se aproximar. Ressoava em seus cíngulos, apenas a vontade de fazê-lo um macho.

Montar a vida e pisoteá-la por qualquer custo que lhe fosse imposta. Torná-lo um homem rico, evidente e incólume. Mesmo sem ter a certeza de qual lugar ou de quem era esse seu desejo anelar. Apenas estava lá. Como a invariável vontade de fugir assim que o filho lhe dava o primeiro bom dia. Desesperação do acender outro cigarro e transpor aos pulmões pré-adolescentes a essência da masculinidade em setenta por cento de tabaco processado.

Estava inalcançável à fuga, mas o maço, não.

O paternalismo enrolado em seda manufaturada, o homem chegando em meia idade liquidifica a fumaça tornando seu corpo ainda mais fulvo.

Ao ver o menino com o rosto em alvorecer inchado depois de anoitecer marcado, exala fumaça como um troféu. Apaga o mínimo pelo fundo da xícara, resvala na cigarreira; descuidando-se em manter no ar apenas mentiras salpicadas e não recobrindo toda a toalha de mesa acende outro.

Eu, entremeio ao filho e o pai, vejo o coto do primeiro cigarro alçado ao chão.

A mão que rapidamente alcança o pescoço de meu quase amigo, sufocando uma promessa também eclode surpresa: uma ameaça, clara. Ele deveria apanhar mais na escola pois a mãe não poderia desconfiar de que aquilo tudo em seu rosto era familiar. A manga do uniforme levantada, o segundo cigarro apagado na curva interna do ombro e os restos novamente arremessados no chão da cozinha.

Pai levanta-se, fagocita um gole do café alcoolizado. Sai. Meu amigo engolindo-se apenas olha os restos dos cigarros ao chão. Amparo suas mãos; não somos tão íntimos ainda.

Suspiros mórbidos enquanto ele reflete se é necessário apagar os vestígios também da presença do pai ali. Não me causa espanto algum enquanto comemos as bitucas de cigarro jogadas no chão. Molhando os dedos com saliva, lambemos os restos das cinzas. Eu já de mesma coloração não me importo. A nicotina tornou-se parte de minha construção desde então.

Do mesmo modo que as lentes corretivas marcaram meu destino.

No dia em que elas chegaram ao chão, senti os óculos atravessarem por entre a sombra de meus dedos tal qual navalha cortando inexistente corpo.

O tapa estalando através da mandíbula no rosto do filho coava-se através dos tecidos. Olhos estriados em espanto por serem pegos na surpresa dentro de um embate, que pela minha lógica, nem ao menos aconteceu.

Atônito, me vi tecer tentáculos ao redor de seu corpo no segundo entre a agressão e a volta da cabeça ao lugar de origem, visto ter rodado com a força da mão. Outra vez, ofereço apreço pelos meus braços.

Meu amigo, ausente cinestesia.

Isso sempre nutriu-me algum desconforto emocional.

Nunca o vi esboçar reciprocidade, nem ao menos nos momentos quais minhas mãos acalentavam seu coração por completo. Poderia ser egoísmo, naquele momento adrenérgico, sentir algo que não fosse a força da serpente amarela esverdeada transformando os ossos do rosto em um ponto definitivo de imensidão.

Não obstante, agastei-me.

Ao longo dos anos a anuência de meu amparo confundido por depressão também não foi acalento. Todo o tempo que passei ao lado dele foi de solidão; até quando cortava a carne de seus braços ao meu abraçar seu peito.

Da discussão inexistente sobrou apenas um remanso manchado na pele. O xingamento como resposta que recebeu de seu pai ao indagá-lo, foi uma afirmação bélica e não uma conversa.

Atestado de imposição territorial forçada à defesa feita pelo filho de toda a postura moral hipócrita do réptil.

Todavia, não houve tempo.

Apenas frustrar de meu amigo ao vingar-se do que vira no escritório do pai. O sedimento revirado por uma retroescavadeira naqueles quilômetros paralelos ao trilho do trem que asseguravam seu caminho de volta para casa. A saia pelo quadril, a meia pendendo pelos pés.

Solitário.

Apenas o pesar de minha presença em cima de seus ombros. A sombra escura do meu peito, por onde atravessariam os óculos arremessados pelo tapa, abraçaram a nuca de meu amigo.

Não seria a primeira vez que a elipse solidão e violência cruzara seu caminho. A retina ainda fervente das imagens, pitorra giratória buscando um porto em póstumo horizonte, lembrava-se de uma parecida cena em nem tão vetusta outrora.

O desamparo rebatendo náuseas ao chegar em casa, recebido por socos maternos. A azul perdida moça, ao intuir seus beijos com a amiga de sala. Após não sentir o cheiro fóssil de seu leite materno no hálito do filho, mas sim o gosto dos seios da menina, transpassou um murro em sua cabeça pelo atraso no almoço. Meu amigo, de sorriso transformado em âncora, não teve nem a reação do choro quando o segundo murro na cabeça nasceu por dentro da mão de sua mãe azul. O doce do mamilo exilado em zinco nos lábios manchados de mágoa.

Amparei a sombra com meus tentáculos ocos nas duas voltas para casa.

A segunda, iniciada ao giro daquele miolo de fechadura desapercebido por todos os presentes no escritório.

A tranca estranha tinha um pequeno filete que poderia ou não ser um pedaço de chave. Da sala de escritório antiga, sobrara apenas aquele miolo. Casarão em uma esquina em declive, a empresa vendia materiais para a confecção de calçados. Quase tudo. Couro transpassado por um marrom doloroso, jaulas de solvente, cuestas plásticas sedimentando polietilenos, e planaltos levemente elevados em poliestirenos. Um odor de vício. Na entrada enormes portas de ferro suando nicotina, deixando exalar por entre seus arrebites as pequenas melancolias que uma cidade do interior possui.

Os domingos evaporados nas calçadas e suas cadeiras de reunião familiar, as senhoras nas janelas evocando cigarros imaginários que lhe acompanham os relatos, as madrugadas mornas de um sábado desabitado. Tudo calcinado naqueles mausoléus que permaneciam abertos em horário comercial.

Por ser desapercebido, meu amigo entrou pelo casarão jamais visto; passou pelas encostas de materiais, adornou com sonhos alguns pedaços de plásticos soltos nos montes e foi em direção à tranca solitária do escritório da serpente amarelada.

Até o momento de sua morte, amparado na calçada por uma desconhecida, meu amigo lembrava-se do estalo da fechadura. A mesa postada ao fundo da sala era manjedoura de um vidro milimétrico acinzentado. A cor do tampo revoando o tecido.

Os cheiros dos centímetros gerados pelo atrito das falanges, o dorso algodoal da palma nuvem arremessava o sexo da serpente amarela de volta ao ninho. Uma mão estrangulava. As patas trituravam um par de pernas. Sangue elétrico de lembrança a escorrer pela boca levando pedaços de encéfalo de meu amigo.

No meio da sala uma espiral nasce. De linhas circulares em vermelho e preto. Tal truque mágico mambembe. Em sua borda, o cinza das pernas de sua mãe carcomem os pés da mesa que salivam veneno. Aos poucos as linhas da espiral também são tomadas. O tom necrosa. A sala é engolida pelo túnel varicoso. Serpente e a presa oram ao apocalipse engolindo-se. A porta tranca-se. O mundo desaparece. Só resta apenas eu. Subo nas costas de meu amigo e o conduzo de volta pela segunda vez ao caminho de sua casa.

Enquanto as noites trocavam de pele alvorando-se pelo tempo, preciso confessar uma certa dose de ingenuidade quanto ao conceito da palavra casa.

Muito por percebê-la através dos olhos de meu amigo e seus pensamentos. Morada, segurança ou um teto são definições simples demais e não exemplificam a totalidade, levando-se em consideração tudo o que aconteceu entre aquelas paredes.

Caso acaso me desse o afazer léxico, lavoura seria a entrada que escolheria.

Referencio-me agricultor.

Menos por modéstia, mais pelo discernimento da bondade, pensar o cultivo do amparo tal um campo de afeto; de sonhar em salvar almas.

Complexo, desgastante e sem recompensas como todo trabalho heroico.

A pedra acima do morro era idêntica à carregada na encosta, mas o terreno deveria ser arado.

De mesmo intenso amor pelo ofício era a decepção pelo desprezo de meu amigo aos esforços.

Sobretudo hoje; um cultivo de primar ímpar.

Preparava o terreno daquele dia pois datas especiais pedem particularidades. Presentes trocados e recebidos na última semana do ano.

Buscava um semear ideal antes do sol saturar todas as cores; enquanto luz menina avizinhava-se. Tons desmedidos de um branco azulado celeste torneavam-se lumiares, delimitados no horizonte pela névoa em que a terra amparava o firmamento.

Mascavas linhas uniam-se tal ondas com a costa. Lá, ao fundo infinito, a figura desconexa de uma casa navegando mancha de convés.

Tanto distante quanto um ataque vertical de pincel por entre as ondulações da rua.

O asfalto banco de areia descortinava sobras do continente que o mar deixou quando da maré baixa. Construíam níveis de ondulação cercados por lagos menores. Pintura feita pela espuma d’água lançada das calçadas ao betume.

Restos de terra espalhada pelo vento oleando-se ao líquido tragavam marrons amarelados com detalhes esfumaçados nas bordas. Minhas mãos rondavam o vislumbre da minha residência. Paredes de pesqueiro negro em uma praia em Berck. Portões fixos por tonelada equilibrista ancoravam hastes velas metálicas. A sombra deste imenso navio resvala aos olhos uma catedral ancorada no banco de areia.

Altar em que cuidava de todos os detalhes de meu amigo, sempre costurado aos seus pés. Meu pagamento, seu esquecimento por dias meses e anos.

Era meu papel de herói.

No entanto aquela casa no horizonte, a embarcação de pincelada escura insistia em fitar-me os olhos.

Cercas mais baixas na entrada eram sobras da construção inicial. Equilíbrio junto ao gramado raso levemente seco pelo verão sem cuidados. Da mesma forma que todas as outras, a fachada afastada era ar de imensidão impotente. Em seu interior, o casal de moradores esperava a serpente amarela para uma tarde de dezembro entre amigos antes das obrigações familiares do dia.

A mulher em azul, que nunca era convidada, vagarosamente enchia o ar com meu nome na casa ancorada no banco de areia.

Preparava todo impossível.

Primeira grande comemoração que passariam ali.

Redobrava-se inúmeras para tudo ser perfeito.

A surpresa ao filho deveria ser inesquecível.

Meu amigo, achegado à manufaturada árvore com luzes, galhos e enfeites, repousava em um quadricular pacote. O som do trem, sempre duas da tarde próximo à rua, deslocou-se metáfora. Era possível ver, por um pequeno corte no papel (feito pelo cigarro do pai aceso) a palavra Ferrorama.

Guardei segredo do presente. Sequer esbocei insegurança quando o pai empurrou-o para fora do quarto enquanto se arrumava. Meu amigo tentou chorar. Sequei seu rosto segurando-o firme para que perdesse seu olhar ao longe. Sem reflexos, fusionando-se à parede depois do impacto.

Meu amparo, uma vez mais ignorado.

Nem ao menos obrigado.

Até quando.

Controlo meu incômodo e penso acalentar seu sofrimento levando-o até à árvore. Esperei. Ele deveria suportar a hora. Não estragaria toda surpresa, nem que fosse necessário leve sofrimento por alguns minutos. Seu olhar perdido me procurou como suspiro.

Estávamos juntos outra vez, dependendo um do outro.

O pai sai com uma sacola de cervejas tornando-se outra pincelada perdida além dos bancos de areia. Caldeou-se através do portão de entrada, em direção à tinta do casco no horizonte.

Espumava contentamento errante.

A ponta de cigarro prístino desaparecendo segundos. Meu suspiro antecipa a tormenta de atraso a ser vivida naquele dia. Entro pelas paredes de nossa casa uma vez mais.

Cinco horas da tarde.

Meu amigo no banho pois deveria vestir festas costuradas ao corpo. A moça azul enforcada entremeio as grades no fogão, açoitava-se através chamas que lhe ditavam o ritmo das chibatadas.

Enquanto o mar de asfalto deixava-se amar pela baixa maré, uma canção em sonido continental atravessava a costa das casas. Desenhava a serpente amarela dançando com a vizinha enquanto seu marido preparava outra rodada e acendia três cigarros.

Seis horas da tarde.

A música perfurava o meio fio.

Vestido, meu amigo sentou-se ao lado da falsa árvore.

Esperava. Distraía-se com um dos livros emprestados por seu vizinho, sobre um homem e seu desejo em estudar a loucura em um lugar chamado Casa Verde; fato que lhe colocava um sorriso no rosto, pois o hospital tinha o mesmo nome do bairro em que a família da moça azul mudou-se ao longo dos anos.

Sete horas.

A ansiedade resvalava em estragos, mas seu controle não deixaria transparecer o pânico. Tremores através das costelas e seu rosto intacto despedaçando-se atrás das orelhas.

Mesa pronta.

A mãe corre ao quarto e permanece ali por alguns minutos. Funde-se à parede em lágrimas. O pai pulsando escolhas libertas das prisões auto construídas. Cântaros ingestos de álcool, fúria e urros. Livre de si mesmo. Genuinamente feliz, pois seu corpo ventava pelas arestas das telhas enquanto era possível ouvi-los até ao lado da falsa árvore.

Oito horas.

A moça azul rastela os cotovelos com um garfo. As tiras de pele tornam-se memórias. Impossibilitada em conter o tempo através dos dedos, conta as gotas de desespero enquanto pede ao filho que vagarosamente monte seu presente. Se entender muito bem, mas ciente sobre o significado, meu amigo atravessou um sorriso desguarnecido. O pacote dissolveu aos poucos revelando meu anterior olhar. O maldito nome. Persecutório até o final dos meus dias; Ferrorama.

Nove horas.

Pedaços de plástico em forma de pilares, trilhos e sinalizações. Tudo precisa de ordem, então é necessário paciência. Percebo um detalhe escapar que não a ausência da serpente amarela. Meu amigo não avista o pecado, pois concentrava-se no término da construção. A pista de formato infinito. Uma ponte e outra curva. Todas peças das dormentes afiadas. Encaixes lentos.

A sensação de perda completa ao entender que pilhas não estão inclusas.

Os sons da casa no horizonte ilusionam feridas auditivas. Nascem reticências nos olhares. As veias nas mãos de meu amigo transfiguram pulsos arroxeados. Tudo parece retificar um terremoto.

Dez horas.

Já cansado, aparo minhas costas na parede da sala. De tanto esperar o jamais do réptil, a moça azul vai até à vizinha. Meu amigo a vê saltar entre os bancos de areia. Ela chama. Ele sai. Levitou um urro derrubando o copo. Bate o portão entre os dedos dela exigindo respeito. A serpente arrodeia as pernas da mãe e esmaga seus braços. É possível ouvir o hálito do pai por toda extensão da rua. Ela pede que volte, pois o trem não tem pilhas. Ele gargalha. Os dois deveriam parar um trem de verdade e pedir ao maquinista que empreste a bateria. Um soluço materno. A serpente lança um míssil ar rosto. Ela cambaleia ao meio fio. Meu amigo trava o maxilar. Quebra o segundo molar. A serpente dança em direção ao casal de amigos, rouba um beijo da vizinha e o cigarro do marido. Eles sorriem. A casa trancada no rosto da mãe. Enquanto volta, seu sangue claudica do olho ao chão. Meu amigo cospe os restos do dente. Os restos do mar nas poças do asfalto levitam; formam caminho seguro à moça azul e sua órbita tingida em vermelho.

Onze horas.

Amparo a mãe enquanto seu olhar perde-se ao longe. Não percebo o filho correr à sala. Antecipo sua presença ao lado da árvore enquanto descrevo linhas imaginárias com os dedos. Uma vez mais o abraço com força, esperando que toda aquela dor cesse. Não há resposta. Apenas o rosto estático. Meu gesto ampara seu coração com tamanha resiliência que sinto-o bater por entre minhas falanges invisíveis. Meu amigo não responde nem ao menos um suspiro; apenas a distância.

Em meu peito algo acende.

Não percebo a moça azul chegar. Aos tremores observa o Ferrorama e a ausência completamente prontos. Um brinquedo que depois de tantas conversas, brigas e restrições impostas pela serpente não serviu de nada.

Quantos apelos da criança em querer pela certeza da ajuda paterna na montagem. A data seria uma renovação do casamento. Espuma de maré ressoa nos lábios dela. Toda a arrumação da casa para nada, o vestido tão inútil quanto as mechas no cabelo. A maré avança. Não existe mais saída ao dia, tudo arruinado por conta da insistência no brinquedo. A maré sobe. Ela ataca. Os pés demolição dos trilhos arrancam a ponte de lugar. A retroescavadeira das mãos alavancam os vagões em direção à janela. Seu filho incrédulo lhe pede perdão. A maré ressoa. Ele não consegue desviar quando a locomotiva lhe atinge a cabeça, como tantas outras coisas que o acertariam lançadas pelas mãos dela. Estilhaços desenham círculos de pólvora nos galhos da falsa árvore e o trem é demolido. Outro forte abraço meu sem resposta. A maré recua. Meu amigo olha os trilhos estilhaçados.

Meia noite.

Como todo réptil em ecdise cambaleante, rastejou ao moer o asfalto com a pele que trocava. Aos berros lançava murros contra o rosto da moça azul, que lhe chamava de covarde. Amarelada ao extremo, o horror da vida lhe corroendo ouvidos. Jura assassinato, alardeia um chute de raspão na saia. Incrédulo com seu destino, tenta arrancar o portão da casa. Lá dentro, os trilhos despedaçados formam guilhotinas. Meus esforços cada vez mais insípidos e o filho avança seu desprezo pelo meu abraço.

O bigorrilho já dentro da casa, alcança um litro de cachaça que o esperava. Meu desespero é tamanho, que uma série de questões sobre qual minha função de verdade dentro desse manicômio surgem. Não existe heroísmo plausível que sobreviva uma série tão poderosa de desamparo. Frustrado pela não reciprocidade, acompanho a serpente pisotear os destroços. Percebe o filho catatônico e repete um mantra até entrar no banheiro.

morreu?

Tento recolher os pedaços do brinquedo pelo chão, mas meu corpo inexiste. Não tenho mãos. Volto ao meu amigo imóvel. Hesito pela primeira vez sobre abraçá-lo. Me pergunto se realmente sou quem devo ser, pois minha funcionalidade não permite um resultado diferente de tudo o que ocorre.

Relembro o momento que entendi estar vivo. Percebo meu nascer sem entender meu propósito. Se é que existia. Nuvens transbordavam espera. Assumi previamente meu dever ser amparar aquele corpo sob quaisquer circunstâncias. Desenhei esquecimento sobre mim mesmo. Estava ali, mas era só isso. Rondava a casa, olhava a vizinhança, tocava os moradores, entretanto não era real. Proporcional ao meu existir era o vazio dos meus abraços. Não havia reação nem acolhimento, e talvez, pela completa inabilidade de entender a função, a frustração ressentida aquele dia era minha maior culpa.

Respirei como quem se encontra. Nem por isso deixei o rancor escapulir. Se há culpa por não perceber quem era de verdade, há redenção. Meu amigo, repetidas vezes não só apenas incentivou minha confusão, mas aprofundou a sensação de morrer em vida. Todos eles de alguma forma o fizeram. O pai em covardia, a mãe na distância e o filho com seu desprezo. Vivi tanto tempo em delírio cultivando uma empatia oca, sem ao menos perceber que das minhas mãos só existiriam ranger de dentes. Por dentro do meu peito invisível o ódio tracejou um meteoro.

Nunca mais desapareceria por entre a paralisia deste menino. Hão de existir duas obrigações morais: meu amigo clamará meu importar e eu serei imensurável presença. Minhas vontades rebentariam imediatamente pois perdi tempo demais pensando em importâncias falsas.

Alcanço a mão de meu amigo que pela primeira se move com a minha. Nossos dedos em uníssono ressoam nos trilhos despedaçados. Dois corpos aos novelos moldurando-se em tintas óleo. Percorro toda a extensão de sua paralisia profundamente; em segundos sou eu quem o move. Aflora o propósito sem esforço. Os trilhos em nossas mãos são espátulas e meu amigo nem ao menos esboça uma reação quando lhe corto os braços com as pontas do plásticos.

Cacos do brinquedo ecoam armas e uso meus músculos ocos para golpear toda a extensão do punho até a altura do cotovelo. Em brisa aprofundo uma borda serrilhada dos trilhos pela pele. Polietileno hematófago arando os tecidos, sulcando o solo onde semeio minha vida.

O sangue aos poucos irriga o trajeto da plantação. Amplio a lavoura em dois traços paralelos. Os olhos de meu amigo não existem mais. Dois reflexos meus apoderam-se das órbitas. Ao transpassar a foice feita de Ferrorama pelo meio de seu peito, na direção do coração, outro terreno se abre. Ao longo dos anos cultivarei o desespero que lhe guiará. Do masturbar-se pensando na vizinha até queimar-se com cigarros para manter a presença do pai viva, mesmo depois da sua morte.

Finalmente eu estava vivo. Sou seu corpo e o estraçalho como deveria ter feito desde o começo. Cada corte que meu amigo fazia cultivava todo ressentimento através daquela pele que se tornou meu latifúndio.

Anos depois do desprezo, entendi que minha função era apenas ser o Vazio, que levaria meu amigo, meu primeiro contato humano e algoz, à morte.