Ninguém ao certo saberia dizer se os sons nascidos pelos arremedos no concreto eram ou não vozes humanas. Serrados, secos e sedentos eram quase urros susssurros. Tudo isso torna ineficaz denominar essa imagem como a primeira impressão de uma indústria que fabrica veículos de demolição. Tais máquinas têm engrenagens formadas por roldanas sombras de violência e estruturas mecânicas de força desproporcional contra corpos que tentam impedi-las.

A fábrica de onde saem essas máquinas são construções formadas por uma base de concreto pós segunda guerra em que os papéis sociais foram definidos e encravados ao longo dos anos nos encéfalos da população como verdade absoluta. Os sólidos pilares construíram um prédio que antecipou em anos a gentrificação imobiliária, visto desde o começo seus departamentos e espaços serem ocupados por especuladores.

Ao longo do tempo a fábrica manteve sua estrutura formativa em um organograma muito bem definido por pequenas castas, quase todas de fenótipos bem específicos e uma ideologia de organismo vivo, moldando-se aos interesses financeiros e políticos do momento. O que através dos anos concedeu-lhe perenidade, visto a manufatura das máquinas de demolição sobreviver há séculos com o mesmo modo de operação e gerenciamento.

Cada departamento tem sua própria equipe de marketing com mesmo conjunto de preceitos básicos:

a) A fábrica é imprescindível ao funcionamento correto do mundo;

b) Todo departamento possui uma escala de trabalho hierarquizada e decrescente, o que garante o descanso da elite econômica da estrutura;

c) Não existem máquinas produzidas com defeito ou qualquer problema no funcionamento da fábrica; todo erro na produção deve obrigatoriamente ser gerenciado como uma atitude problemática de um funcionário com pouco tempo de serviço, um pedido de desculpas (escrito nos moldes de um formulário criado pelo conselho presidencial) e, por fim, uma forte campanha de esquecimento;

d) Todas as campanhas são pautadas pela ideia de que a fábrica é vital para o funcionamento social, tal qual um bastião moral e de superior inteligência;

e) Por conta da estrutura de organismo vivo, cada departamento ao longo do tempo torna-se obsoleto devido ao avanço da tecnologia, o que acarreta ser enterrado com todos os funcionários vivos. Essa regra não se aplica aos departamentos de gerência e presidência pois são a elite intelectual da fábrica;

f) Todos subalternos devem cultivar (e pensar eternamente na possibilidade) o sonho de ascender dentro da estrutura hierarquizada de poder.

g) Há uma multa encravada nas miudezas contratuais trabalhistas, caso d'alguma manobra manufaturada pela fábrica venha causar desastres; Não se sabe bem qual o valor, porém na última linha desta seção pode-se ver um protocolo intitulado "Not All Protocol";

i) A ânsia do sucesso deve ser incentivada como forma de mérito (mesmo com a utilização de métodos violentos e desonestos) e única forma de manter a estrutura social do mundo segura.

Todas essas regras nos departamentos de propaganda são mais importantes até que a própria construção das máquinas, visto a eficiência não ser sua mais notável característica.

Entretanto, existe sim um atributo muito bem observado em detalhes por todos os que residem na cidade Talpolis, local da instalação da fábrica.

É a forma como as máquinas de demolição se comportam.

Ao saírem dos portões da indústria dirigem-se aos povoados mais próximos e fazem testes de eficiência com as casas. Não chegam exatamente a destrui-las por completo, apenas deixando duas ou três paredes inteiras.

Chama atenção que após a demolição, um funcionário adentra o local e explica aos moradores que estes são parte importante do processo de evolução da raça humana e, não devem render-se à sensação de desalento, pensando-se não merecedores da felicidade do existir por seus próprios meios. Em verdade não merecem (explica o funcionário), mas a fábrica oferecerá alento caso todos viverem dentro da fábrica; sob as leis e a ordem da manufatura.

O funcionário entoa um panfleto de benefícios: Encontros com a mesa diretora, presentes dados especificamente pelos presidentes, até a oportunidade de formar um grupo de defesa que espalhe o modo de vida dentro da fábrica como a utopia dos vencedores.

Os indivíduos que escolhem seguir à fábrica ganham uma rosa, as pessoas que se recusarem acompanhar o funcionário são executadas nos escombros com uma bala na nuca, descontada em seu valor no primeiro salário do componente familiar que aceitou o contrato.

Ao avançarem em direção aos bairros mais afastados do centro cartesiano, as máquinas de demolição aceleram o seu ritmo e não se interessam por saber detalhes dos locais. A única ordem é sumariamente arrasar casas. Na existência de crianças as máquinas ganham bônus salariais por cortarem o mal pela raiz. Tudo é devastado. O objetivo é não deixar vestígios de amor próprio em ninguém. A fábrica tem no extermínio do sentir propósitos e lutar por eles um dos maiores conceitos.

Não pode sobrar resquício de qualquer corpo dissonante dos aspectos físicos da diretoria e dos presidentes. Quem consegue escapar dos avanços da perfuratriz Jumbo (nome do maquinário) é perseguido por outro funcionário da empresa, bem parecido com os diretores. Carrega consigo um pequeno martelo. Em sua ponta, uma neurotoxina importada dos Estados Unidos. Ao atingir a pessoa, insere um estado de letargia e depressão imediato, fazendo-a passar o resto de sua vida vagando sem rumo pelos extremos da cidade.

Em tempos estranhos ao funcionamento da fábrica, o departamento de semiótica (que hoje encontra-se fechado por tempo indeterminado) realizou um estudo clínico com pessoas atingidas pelo artefato.

Relatórios indicaram a presença de uma forma humana, em moldes góticos de horror corporal, alardeando passos aleatórios pelos escombros da cidade.

Essa figura passava os dias regurgitando reclamações sobre como o estado das coisas eram culpa de pequenos grupos marginalizados. Dentre os maldizeres emanados por esses seres, existia uma teoria da conspiração sobre como esse grupo (homens em maioria esmagadora), nasceu não por conta da neurotoxina na ponta do utensílio, mas pela falta de compreensão que os grupos marginalizados perpetuavam com os mesmos. Estavam nesse estado de miséria humana não por conta das operações da fábrica, era por culpa d'outrem.

O mesmo estudo revelou episódios recorrentes de violência desses seres contra os grupos marginalizados. O número de assasssinatos, estupros seguidos de morte, ocultação de cadáveres e outros hediondos mostram uma progressão geométrica. Quando do vazamento das páginas na imprensa, também foi revelado que na conclusão feita pela direção ficou decidido que nada seria feito a respeito do problema.

Os donos da empresa entenderam que esses seres estabeleciam um tipo de controle social, dividindo a sociedade entre quem os enxerga como vítimas e pessoas que querem combatê-los. Pela capilaridade da ideia do mérito como validação do eu, a população nunca chegou a um consenso, visto muitos dos homens acreditarem nas teorias conspiratórias dos assassinos.

Há uma observação no mínimo curiosa no rodapé de uma das páginas. Uma frase em grafite quase amnésia:

"Possível protocolo de controle (estudar possibilidade)".

Todas as movimentações das máquinas, chamada Operação Cidade Limpa pela presidência da fábrica, é acompanhada internamente em grupos de e-mails fechados que se comunicam por textos ilustrados pelas fotos dos corpos atropelados. Neles, novas ideias para perpetuação da raça, piadas internas e apostas sobre quem dos diretores transaria ou não com determinado fenótipo.

Esses diretores são responsáveis pelo início da campanha contra informativa disseminada através de várias plataformas digitais; muitas delas contratadas pela fábrica. Outras recebem tectônicas quantidades de dinheiro para disseminação de propagandas ligadas à empresa.

Geralmente o mote dessas peças gira ao redor de não ser a hora de desenterrar cadáveres, visto a população possuir obrigações morais de discutir os passos para melhor evolução da estrutura que possibilita viver na cidade. O problema não é a diretoria perpetuar o método, mas, a população não pensar no futuro; em seu merecimento e como acolher seus assassinos.

A campanha criada pela diretoria ficará arquivada. Como objetivo secundário, espelhará essa estrutura social de vida através de gerações. O intuito é obstruir a descoberta da mediocridade dos que comandam a fábrica, dessa forma, impedem tentativas de revolta.

Em uma estrutura opressiva a estratégia é você sentir-se lixo.