Enquanto arruava em pensamentos desencadeados pela lâmpada perdida nas areias da minha praia vizinha, pensei estar embaralhada de retina quando me dei conta da inesgotável aproximação de Haroldo. Outra vez. Com a mesma mochila do ano passado que quase não lhe cabe entre as escápulas. Outra vez. O olhar determinado a decidir, porém vacilante, para em frente minha casa. Outra vez.
Contudo, em sua mão esquerda desta vez carrega uma mala tamanho médio. Era possível ver ferramentas reincidentes escapando pelo canto direito; mais cuidadoso por certo, cansou as mãos de tanto carregá-las.
O suor que lhe servia de anteparo à melancolia tramava aos sussurros. Haroldo semelha uma libélula congelada diante do lagarto assassino. Está lá, estático, corroendo seus segundos, esperando a tragédia desterrar seu interstício mais pegajoso, àquele que manteve intacto, mortal e cruciante.
Tão tensionado estava, que consegui ouvir atropelarem seus ouvidos as lembranças de um lugar que deveria ter esquecido, enquanto batia sua cabeça com força no pedaço de madeira que segurava em suas mãos. As memórias desembarcaram no asfalto degradado; seu pai enterrando punhos em seu rosto por não saber Latim.
A rua inclinada, muros pintados por espinhos e casas dividindo o mesmo meio da rua. Haroldo morava em uma, eu na outra, e soterrada, a mudez da morte no meio fio. Enquanto ele permaneceu em frente a nova casa apavorei-me em memórias.
Desde cedo a vida adulta mostrou-me solidão. Quando grávida, o pai fugiu; seis anos depois cheguei à rua inclinada. O médico me trouxe pequena falta de ar aos esforços. O filho cresceu ao redor dos olhos azuis, eu, a mãe, escavei pele árida através do tempo.
Meu vizinho pré-adolescente. Eu formada em Letras.
Só entendi como tudo começou desencavando uma recordação: as mães da rua moravam em rotinas, uma delas era lavar a calçada. De bermudas ou calções deteriorávamos o lençol freático. Às vezes fofoca, outras, cinismo em jatos d’água. Um desses me fez correr à calçada da frente. Semi morta pelo esforço, percebi nas verticais envidraçadas da casa um movimento. Haroldo alisava a aresta da cortina. Ele, hoje ajoelhado no portão nova casa, observava febril as mães, as pernas, o escorrer da água, e a mim.
Descobri depois como seu pai lhe aterrorizava. Presenciei uma surra em Haroldo por não memorizar um grupo de palavras em Latim. Lembro de algumas: corpo, tíbia e professora. Fiquei estática sem fazer nada. Ao vê-lo caminhar deteriorado, a desolação das árvores sem folhas no inverno era mais alegre do que seu rosto. Olhos enterrados em minha direção buscavam abrigo. Tínhamos em comum a rejeição, então, seria justo uma professora ensinar nova realidade. Comprei para meu filho um laboratório de química e mágicas, cujas misturas criam o “sangue do diabo” e “saliva ácida”. Chamei Haroldo para brincar; ele veio. Como sempre viria.
Por conta do calor e de uma pequena falta de ar, fui me deitar. Os meninos brincavam. O vizinho atrás da cortina enfim sorria genuinamente. Adormeci mesmo inspirando de forma anelante. Pensei ter visto Haroldo parado na porta do quarto. Sobressalto. O ar sumiu. Retornou, após perceber que não era. Outra vez dormi até sonhar com o vizinho pedindo ao filho para usar o banheiro e novamente parar na porta do quarto. Cerrar meus olhos não impediu-o de cavar seu caminho, rastejando até minha perna, para acariciar a panturrilha. Seus dedos acossavam meu músculo como caça, subindo e descendo minha pele querendo rasgá-la. A boca roçava os dentes em meu aquiliano e lambia o começo do músculo. Respirava em arco, a língua camaleônica e as mãos correntes. Eu presa em pânico feito libélula congelada diante de um lagarto assassino.
Despertei, pingava desespero. Seria pesadelo horrível não fosse Haroldo encarando-me na porta do quarto. Sai correndo, mas minha voz não consegue segui-lo. Tento levantar, o ar não permite. Pavor me descompõe. Torço ser apenas cortina movida pela curiosidade. Mesmo ainda sem ar, assossego. Não era sonho. Algo em meu corpo não funcionou, a lembrança do médico ressurge; essa falta de ar pode ser o coração. Suspiro.
Ele volta.
Mais confiante, avança. Finjo dormir para cravar-lhe um vexatório. Suas mãos em alarde, abre a boca. Preparo o bote. Serei lagarto. O ar some. Pânico, pois as mãos de Haroldo retornam torno mecânico. Sua saliva no meio da minha perna. Faringe trancada. Ar rarefeito. A circulação em meu braço esquerdo presa. Sorrindo, e misturando idiomas me chama professorinha. Tento um tapa. Os dedos trancafiados. Ele me vê adormecida. Explodo imóvel. Minhas cordas vocais esgarçam trovão contido. Ele se assusta. Foge. Eu, paralisada sem nenhum ar.
Nunca mais Haroldo pisou naquela casa. Os quartos afogaram-se em poeira, as paredes morreram aos pedaços. O filho cresceu e seu brinquedo com experiências químicas infantis sublimou-se. Obrigado a morar com o pai, suicidou-se aos vinte e dois. Nosso vizinho retornou ao seu estado larva e assim permaneceu. Me mudei logo depois do episódio de terror daquele dia. A memória agarrou-se aos meus pensamentos tal predador egoísta. O lagarto assassino nunca mais pisou no mesmo solo que eu. Até o dia que vi Haroldo cruzar a praia pela primeira vez.
Obcecado.
Andava abrindo túneis e caçando libélulas, tal réptil assassino. Cada vez mais perto do portão. Ele encontrou a cidade do litoral, o cemitério e a cova.
Batia sua cabeça na pá usada para desenterrar o corpo, outra vez paralisado. Cada dentada da ferramenta, o caixão trepidava. Ele, emocionado, só repetia o substantivo. Terra espalhada. Ossos saltam. Vai direto à perna, acaricia a tíbia com saudade de minerador. Limpa pedaços de tecido e poeira. Inspira profundamente. O periósteo cadavérico terrifica. Há um beijo. Lábios úmidos na parte de baixo do osso, molduram pedaços de carne azeda, barro e graveolência. Alteando a língua, lambe a medula óssea seca por uma rachadura. Dentes raspam o cálcio petrificado, retirando vermes que explodem em líquido pestilencial e morno, misturado à saliva de Haroldo. A boca ensopada de pus e lava, como se trocasse líquidos íntimos com o cadáver. Direciona a ponta do osso dentro de sua boca. Trincando os dentes, grita como fanático.
pai, eu achei! pai eu sei falar, pai. corpus, tibia e magistra! magistra! magistra!